Friday 23 February 2007

EXCLUSÃO SOCIAL ATINGE A MAIORIA DOS ANGOLANOS

Por Paulo de Carvalho* (2004)

O termo exclusão social é empregue para denominar o afastamento da rede de relações a que estão sujeitos alguns grupos sociais ou, dito de outra forma, «a fase extrema do processo de ‘marginalização’, entendido este como um percurso ‘descendente’, ao longo do qual se verificam sucessivas rupturas na relação do indivíduo com a sociedade». O processo de marginalização a que está sujeito o indivíduo socialmente excluído relaciona-se com a privação de direitos de cidadão (como por exemplo, o direito à livre escolha de governantes, à privacidade e a uma identidade colectiva), com dificuldades no estabelecimento de laços sociais e com dificuldades de acesso a bens socialmente desejados – instrução, assistência sanitária, emprego, rendimento e recreio, entre outros. O estudo da exclusão social pode enquadrar-se no estudo mais amplo das desigualdades sociais, a que estão sujeitos indivíduos e grupos sociais.

Já Auguste Comte reconhecia que «qualquer sociedade, até a mais restrita, supõe por evidente necessidade, não somente diversidades, mas também certas desigualdades». Apesar de nem todas as desigualdades sociais produzirem malefícios para a sociedade e suas componentes (há nomeadamente desigualdades que geram complementaridades, potenciam as aspirações e promovem a competição e a mobilidade social), a exclusão social insere-se no grupo de desigualdades que não obtêm aceitação, tanto do ponto de vista moral, quanto do ponto de vista do bem-estar social. O que se passa é que há processos sociais que lançam para a exclusão várias camadas da população, uma vez que a sociedade cria uma série de barreiras que não são transpostas por essas camadas. Quem não transpõe essas barreiras e quem não se enquadra na situação considerada normal, passa à situação de excluído. O excluído é não apenas aquele que não consegue superar as barreiras impostas pelo sistema de ensino ou pelo mercado de trabalho, mas também aquele que não perfilha os nossos pontos de vista, que não venera o mesmo Deus, que não pratica os mesmos ritos, pertence a outro grupo étnico ou tem cor de pele diferente da modal.

A exclusão social é um conceito multi-dimensional, que engloba em si factores de natureza física, geográfica, natural e simbólica. Tal como afirma Martine Xiberras, «existem… formas de exclusão que não se vêem mas que se sentem, outras que se vêem mas de que ninguém fala e … formas de exclusão completamente invisibilizadas, dado que nós nem sonhamos com a sua existência, nem possuímos a fortiori nenhum vocábulo para designá-las». É a Bruto da Costa [1998] que recorremos, para entendermos as dimensões de exclusão social. Este autor enumera cinco dimensões de exclusão. Se a elas acrescentarmos a exclusão política, teremos seis dimensões, nomeadamente: - exclusão de tipo económico, que é caracterizada por uma situação de privação múltipla, por falta de recursos (pobreza, portanto);- exclusão de tipo social, caracterizada pelo isolamento ou pela ausência de laços sociais;- exclusão de tipo cultural, que tem a ver com dificuldades de integração, em consequência de fenómenos como a xenofobia, por exemplo;- exclusão política, que se relaciona com o não exercício de direitos políticos, incluindo o direito de cidadania;- exclusão de origem patológica, designadamente de natureza psicológica ou mental;- exclusão por comportamentos auto-destrutivos, como sejam os casos do alcoolismo, tóxico-dependência ou prostituição. Os grupos socialmente excluídos encontram-se marginalizados em pelo menos uma destas dimensões da exclusão social.

Os excluídos são pessoas com uma série de «insuficiências» e desvantagens, funcionando como grupos «à parte», em oposição aos membros de «pleno direito» da sociedade. Usando a terminologia de Paugam, trata-se de indivíduos socialmente «desqualificados», que «perdem progressivamente a sua dignidade a seguir a uma desclassificação … ou a seguir a uma sucessão de tentativas falhadas de inserção». Segundo a definição de exclusão social que aqui empregamos, a maioria dos angolanos encontra-se socialmente excluída. Em Angola, é importante constatar que, ao invés da adopção do consenso de Estado fraco (com fortalecimento da sociedade civil), os últimos anos do século XX trouxeram o fortalecimento do poder do Estado sobre o indivíduo e a sociedade. Contribuíram para isso a conjuntura internacional e a guerra. As iniciativas de liberalização assumidas no período 1991-1992 foram adiadas, devido ao retorno aos confrontos armados. As condições políticas em que Angola chegou ao final do século XX fizeram aumentar a situação de pré-contratualismo e pós-contratualismo, deixando a maioria dos cidadãos para além da fronteira do contratualismo, ou seja, em situação de exclusão política, económica, cultural ou patológica. A ausência de respeito pelo direito à vida foi, durante algumas décadas, o exemplo mais flagrante de ausência de contratualização social em Angola. Desde tenra idade, o angolano foi visto, não como cidadão, mas como instrumento para utilização indiscriminada por parte dos dois poderes em guerra. Os excluídos fazem assim parte de uma categoria social bastante numerosa, à qual se nega o exercício de direitos de cidadania, o acesso ao bem-estar e à instrução. Em contrapartida, as autoridades garantem a manutenção do status quo, ao mesmo tempo que velam pela manutenção das barreiras à mobilidade social – da exclusão à inclusão.

Num país como Angola, a lógica de exclusão social é simultaneamente uma lógica de subalternização e servidão, que gera falta de estabilidade emocional e ansiedade. As características principais dos excluídos angolanos são: - o deficiente acesso a instrução de qualidade e ausência de qualificação profissional,- a precariedade do emprego, traduzida através de baixos salários e da ausência de emprego de longa duração,- a tendência para o recurso ao mercado informal ou a actividades ilegais (prostituição e delinquência),- uma longa permanência em estado de pobreza,- a precariedade de laços sociais (e de solidariedade grupal), que conduz à debilidade das condições de vida e contribui para a reprodução da exclusão social,- a segregação espacial, através da residência em espaços geográficos pré-determinados – os subúrbios das cidades,- a ausência de perspectiva em relação à melhoria das condições de vida. Existem, portanto, condições para se falar em exclusão social na sociedade central angolana. Trata-se de uma sociedade com relações de produção do tipo capitalista, que se enquadra no grupo de sociedades periféricas a nível mundial. Se Angola se encontra (por um lado) excluída ao nível do sistema mundial, por outro lado, existem internamente pessoas às quais se veda o acesso aos bens sociais e que vão experimentando sucessivas rupturas na relação com a sociedade.

(*) O autor é Sociólogo, membro da Sociedade Angolana de Sociologia e Professor Associado na Universidade Agostinho Neto, tendo sido agraciado em 2000 com o Premio Nacional de Cultura e Artes na categoria de Investigacao em Ciencias Sociais e Humanas.

Fotos: DeLima
Por Paulo de Carvalho* (2004)

O termo exclusão social é empregue para denominar o afastamento da rede de relações a que estão sujeitos alguns grupos sociais ou, dito de outra forma, «a fase extrema do processo de ‘marginalização’, entendido este como um percurso ‘descendente’, ao longo do qual se verificam sucessivas rupturas na relação do indivíduo com a sociedade». O processo de marginalização a que está sujeito o indivíduo socialmente excluído relaciona-se com a privação de direitos de cidadão (como por exemplo, o direito à livre escolha de governantes, à privacidade e a uma identidade colectiva), com dificuldades no estabelecimento de laços sociais e com dificuldades de acesso a bens socialmente desejados – instrução, assistência sanitária, emprego, rendimento e recreio, entre outros. O estudo da exclusão social pode enquadrar-se no estudo mais amplo das desigualdades sociais, a que estão sujeitos indivíduos e grupos sociais.

Já Auguste Comte reconhecia que «qualquer sociedade, até a mais restrita, supõe por evidente necessidade, não somente diversidades, mas também certas desigualdades». Apesar de nem todas as desigualdades sociais produzirem malefícios para a sociedade e suas componentes (há nomeadamente desigualdades que geram complementaridades, potenciam as aspirações e promovem a competição e a mobilidade social), a exclusão social insere-se no grupo de desigualdades que não obtêm aceitação, tanto do ponto de vista moral, quanto do ponto de vista do bem-estar social. O que se passa é que há processos sociais que lançam para a exclusão várias camadas da população, uma vez que a sociedade cria uma série de barreiras que não são transpostas por essas camadas. Quem não transpõe essas barreiras e quem não se enquadra na situação considerada normal, passa à situação de excluído. O excluído é não apenas aquele que não consegue superar as barreiras impostas pelo sistema de ensino ou pelo mercado de trabalho, mas também aquele que não perfilha os nossos pontos de vista, que não venera o mesmo Deus, que não pratica os mesmos ritos, pertence a outro grupo étnico ou tem cor de pele diferente da modal.

A exclusão social é um conceito multi-dimensional, que engloba em si factores de natureza física, geográfica, natural e simbólica. Tal como afirma Martine Xiberras, «existem… formas de exclusão que não se vêem mas que se sentem, outras que se vêem mas de que ninguém fala e … formas de exclusão completamente invisibilizadas, dado que nós nem sonhamos com a sua existência, nem possuímos a fortiori nenhum vocábulo para designá-las». É a Bruto da Costa [1998] que recorremos, para entendermos as dimensões de exclusão social. Este autor enumera cinco dimensões de exclusão. Se a elas acrescentarmos a exclusão política, teremos seis dimensões, nomeadamente: - exclusão de tipo económico, que é caracterizada por uma situação de privação múltipla, por falta de recursos (pobreza, portanto);- exclusão de tipo social, caracterizada pelo isolamento ou pela ausência de laços sociais;- exclusão de tipo cultural, que tem a ver com dificuldades de integração, em consequência de fenómenos como a xenofobia, por exemplo;- exclusão política, que se relaciona com o não exercício de direitos políticos, incluindo o direito de cidadania;- exclusão de origem patológica, designadamente de natureza psicológica ou mental;- exclusão por comportamentos auto-destrutivos, como sejam os casos do alcoolismo, tóxico-dependência ou prostituição. Os grupos socialmente excluídos encontram-se marginalizados em pelo menos uma destas dimensões da exclusão social.

Os excluídos são pessoas com uma série de «insuficiências» e desvantagens, funcionando como grupos «à parte», em oposição aos membros de «pleno direito» da sociedade. Usando a terminologia de Paugam, trata-se de indivíduos socialmente «desqualificados», que «perdem progressivamente a sua dignidade a seguir a uma desclassificação … ou a seguir a uma sucessão de tentativas falhadas de inserção». Segundo a definição de exclusão social que aqui empregamos, a maioria dos angolanos encontra-se socialmente excluída. Em Angola, é importante constatar que, ao invés da adopção do consenso de Estado fraco (com fortalecimento da sociedade civil), os últimos anos do século XX trouxeram o fortalecimento do poder do Estado sobre o indivíduo e a sociedade. Contribuíram para isso a conjuntura internacional e a guerra. As iniciativas de liberalização assumidas no período 1991-1992 foram adiadas, devido ao retorno aos confrontos armados. As condições políticas em que Angola chegou ao final do século XX fizeram aumentar a situação de pré-contratualismo e pós-contratualismo, deixando a maioria dos cidadãos para além da fronteira do contratualismo, ou seja, em situação de exclusão política, económica, cultural ou patológica. A ausência de respeito pelo direito à vida foi, durante algumas décadas, o exemplo mais flagrante de ausência de contratualização social em Angola. Desde tenra idade, o angolano foi visto, não como cidadão, mas como instrumento para utilização indiscriminada por parte dos dois poderes em guerra. Os excluídos fazem assim parte de uma categoria social bastante numerosa, à qual se nega o exercício de direitos de cidadania, o acesso ao bem-estar e à instrução. Em contrapartida, as autoridades garantem a manutenção do status quo, ao mesmo tempo que velam pela manutenção das barreiras à mobilidade social – da exclusão à inclusão.

Num país como Angola, a lógica de exclusão social é simultaneamente uma lógica de subalternização e servidão, que gera falta de estabilidade emocional e ansiedade. As características principais dos excluídos angolanos são: - o deficiente acesso a instrução de qualidade e ausência de qualificação profissional,- a precariedade do emprego, traduzida através de baixos salários e da ausência de emprego de longa duração,- a tendência para o recurso ao mercado informal ou a actividades ilegais (prostituição e delinquência),- uma longa permanência em estado de pobreza,- a precariedade de laços sociais (e de solidariedade grupal), que conduz à debilidade das condições de vida e contribui para a reprodução da exclusão social,- a segregação espacial, através da residência em espaços geográficos pré-determinados – os subúrbios das cidades,- a ausência de perspectiva em relação à melhoria das condições de vida. Existem, portanto, condições para se falar em exclusão social na sociedade central angolana. Trata-se de uma sociedade com relações de produção do tipo capitalista, que se enquadra no grupo de sociedades periféricas a nível mundial. Se Angola se encontra (por um lado) excluída ao nível do sistema mundial, por outro lado, existem internamente pessoas às quais se veda o acesso aos bens sociais e que vão experimentando sucessivas rupturas na relação com a sociedade.

(*) O autor é Sociólogo, membro da Sociedade Angolana de Sociologia e Professor Associado na Universidade Agostinho Neto, tendo sido agraciado em 2000 com o Premio Nacional de Cultura e Artes na categoria de Investigacao em Ciencias Sociais e Humanas.

Fotos: DeLima

5 comments:

Anonymous said...

Artigo muito lúcido este. Apresenta um diagnóstico claro da situação da maioria dos angolanos. Mas como mudar isto tudo? Quais são os remédios para tanta doença social?
António Clemente (Luanda).

Koluki said...

Meu amigo,
Ha certamente remedios para tudo isso. Varios paises os encontraram e continuam a implementa-los todos os dias. A meu ver, da experiencia da guerra muitas licoes para a reconstrucao do nosso tecido social podem ser retiradas, no sentido em que devemos ter aprendido o que evitar para que ela jamais se repita. E o proprio facto de grande parte dos problemas identificados neste artigo terem resultado da guerra, podera' constituir-se num factor de esperanca e crenca de que as coisas podem e devem melhorar, porque pior dificilmente se poderao tornar, isto e' depois do abismo da guerra "the only way is up"!
Mas como sabemos que nem tudo isto e' resultado da guerra, creio que o primeiro passo para se encontrarem e aplicarem os remedios certos devera' ser realizarmos e assumirmos este tipo de diagnostico, em vez de, como acontece muitas vezes, taparmos e olhos e baixarmos os bracos.

Anonymous said...

Rangel,

A mudanca so podera comecar no momento em que Angolanos afectados pela exclusao e alguns Angolanos nao afectados mas conscientes(se e que ainda existem!) se unirem e decidirem que e tempo para a mudanca.

Anonymous said...

Marcos,

Para haver mudanca e se encontrar a cura para a tanta doenca social, voce, eu e mais pessoas tem que tentar, e ser persistentes porque sera um processo longo e que ira requerer muitos sacrificios pessoais, e muita creatividade nao e trabalho para uma so pessoa.
Quanto mais Angolanos (e de todos os niveis) tentarem mais chances teremos de eventualmente mudar algo!

Koluki said...

Marcos e Rangel,

So' agora me apercebi dos vossos comentarios.
Concordo com o que dizem e vamos la' entao, todos Angolanos, de dentro e de fora, juntar as maos e botar MAOS A OBRA!

Um abraco e voltem mais vezes.

PS: se estiverem a escrever de Angola, se nao se importarem, da proxima vez deixem os vossos enderecos electronicos. Obrigada.