Friday 27 August 2010

Mocambique: Relendo Samora pelo pincel de Naguib (II) [Updated]






Quando camaradas solteiras ficam gravidas, consideramos isso um escandalo. O
verdadeiro escandalo e’ o nao termos sabido educar essas camaradas, nao lhes ter
feito assumir o verdadeiro sentido do amor e como a propria relacao sexual se
integra dentro do amor e dentro da vida.

Samora Machel




Decidi dedicar um post separado a essa (infeliz) tirada de Samora Machel, incluida no catalogo desta exposicao de Naguib, por um lado, porque ela destaca-se por si propria das outras, geralmente bem mais pacificas e ponderadas, citacoes nela pintadas e, por outro lado, porque se relaciona e enquadra em algumas das discussoes que, sobretudo nos ultimos tempos (e.g. aqui), a este blog me tenho visto forcada a trazer.

Porque infeliz? Porque, de facto, nao me lembro de alguma vez ter lido algo que retrate de forma tao flagrante algumas das contradicoes e perversoes de um certo discurso dito “socialista revolucionario de esquerda”… Dir-se-ia que Samora estava a falar de uma sociedade algures numa ilha paradisiaca, totalmente “abencoada por Deus”, onde o “casamento” e’ uma instituicao culturalmente endogena e dominante, onde nao se contempla a possibilidade de gravidezes involuntarias e onde os "camaradas homens" (solteiros ou casados) sao todos uns “principes perfeitos” ou “santos”!...

Mas a realidade, e ela nao e’ exclusiva da sociedade mocambicana, e’ que a instituicao “casamento” (e da citacao pode inferir-se que Samora se estaria a referir ao casamento oficial, monogamico e, possivelmente, ate’ mesmo religioso) e’ culturalmente exogena a maior parte das, senao a todas as, sociedades africanas: ele foi “trazido” pela colonizacao e manteve-se quase totalmente confinado aos segmentos populacionais (minoritarios) assimilados as culturas e religioes europeias.

Juntamente com o casamento (oficial e/ou religioso) monogamico, os europeus levaram tambem o patriarcado, com o homem como 'chefe de familia', como estrutura familiar dominante, e embora este nao fosse exogeno as sociedades africanas, nunca foi dominante em todas elas. De facto, o matriarcado e as linhagens matrilineares eram e, em grande medida, continuam a ser, dominantes em varias sociedades africanas, onde as mulheres, em particular no que toca a sua sexualidade e direitos reprodutivos, teem um estatuto completamente distinto daquele que lhes e' reservado nas sociedades patriarcais e patrilineares.[*]

Como, entao, compreender-se que um tal discurso tenha sido proferido por um lider revolucionario africano, num pais em "transformacao revolucionaria" para a "criacao do homem novo", em "combate contra a alienacao, aculturacao e obscurantismo promovidos pela religiao", em “recuperacao das suas raizes culturais” e em "resgate dos seus principios e valores morais" (e aqui ressalvo o facto de a citacao nao estar datada, tal como nao o estao as outras citacoes constantes do catalogo, pelo que nao sei se a tera’ proferido ja’ no pos-independencia, ou se ainda durante a guerrilha anti-colonial)? Pessoalmente, so’ o posso entender como uma perversao da ideologia socialista (comunista?) revolucionaria dita de esquerda… [**]


Josina Machel por Malangatana


De facto, em minha opiniao, apenas uma tal perversao pode explicar que a mesma ideologia que via o casamento como uma instituicao "burguesa", que professa(va?) a “emancipacao da mulher”, que a aceitava como “companheira de luta”, incluindo de armas na mao, qualquer que fosse a sua idade (!) - veja-se aqui a biografia da primeira esposa de Samora, Josina Machel, retratada acima por Malangatana e na foto abaixo, a direita - que a incentiva(va?) a tomar as redeas do seu proprio corpo e do seu proprio destino, a tomar as suas proprias decisoes de vida e a assumir a responsabilidade e as consequencias dos seus proprios actos, nao contemple a possibilidade de que essa mesma mulher possa ser “mae solteira” por decisao propria; ou que se tenha encontrado nessa condicao em resultado de uma desilusao amorosa posterior ao seu engravidamento; ou que possa ter engravidado em resultado de uma violacao… Em qualquer dos casos, a assumpcao plena de uma gravidez e’ (deve ser) sempre uma responsabilidade partilhada – e esta nao e’ estritamente uma questao do foro ideologico (e nem sequer do “politicamente correcto”) ou religioso: e’ uma questao dos foros humanistico e etico-moral!


Josina Machel (a direita)


No entanto, em nenhum momento Samora se refere ao "camarada homem" (casado ou solteiro) que engravidou a “camarada solteira”… E o que afirma e’ duplamente perverso: por um lado, assume o preconceito, a culpabilizacao exclusiva e a estigmatizacao social da “mae solteira” como um dado adquirido (“consideramos isso um escandalo”); por outro lado, sugere que o “assumir o verdadeiro sentido do amor e como a propria relacao sexual se integra dentro do amor e dentro da vida”[***] e’ um dado adquirido no que ao "camarada homem" diz respeito e que apenas a "camarada mulher" (... qual Eva-serpente-jezebel(a) “corruptora” de Adao no paraiso ...) precisa de “ser educada” naquele sentido… para “nao provocar escandalo”!

Mas, talvez mais perturbador do que tudo isso e' a implicacao de que aquela "camarada solteira" nao possa ter entre os seus valores, desde muito cedo na vida, o principio de que a sua auto-estima, dignificacao e valorizacao como MULHER e como SER HUMANO nao estao, nunca estiveram, nem podem estar, em nenhuma circunstancia, exclusivamente dependentes de uma alianca no seu anelar; que a sua postura perante a VIDA nao e', nao pode ser, definida e interpretada exclusivamente pela sua sexualidade - certamente nao por 'definicoes' e 'interpretacoes' dessa sexualidade confabuladas e maliciosa e torpemente forjadas pela vil devassa de terceiros e, sobretudo, terceiras, frustrado/as e recalcados em relacao a sua propria sexualidade e a sua propria vida; ou que uma gravidez fora do casamento, ou que nao resulte em casamento, nao possa ter sido resultado de um acto de Amor... [****] entre "ambos os camaradas", homem e mulher, envolvidos!

Enfim… simplesmente (dupla... triplamente) triste e lamentavel!

(Contudo, Paz a Sua Alma)



*[A legalizacao em 2005, em Mocambique, da (existente) poligamia, bem como a eliminacao do estatuto de facto do homem como 'chefe de familia', como aqui se pode constatar, e' disso apenas a (tardia?) confirmacao oficial...]


**[Infelizmente, Samora nao estava sozinho nesse tipo de postura: era, pelo menos em parte, a ela que me referia aqui, quando falava em determinados grupos de "um radicalismo (embora raramente assumido abertamente) dito “de esquerda” em termos politico-ideologicos e de ideais economicos, associado a um conservadorismo marcadamente “de direita” em termos socio-culturais"; e' tambem ela que se esconde, com o rabo de fora, por detras de certos discursos ditos "feministas de esquerda" disseminados por certas hipocritas 'donas' puritanas recalcadas, frustradas, deprimidas, depressivas e deprimentes, rejeitadas e cheias de ressaibos, inveja e ciumes, que nao nasceram mulheres, aparentemente afectas aos mesmos grupos acabados de referir, como a(s) de que aqui se fala...]


***[Para mim o significado de “assumir o verdadeiro sentido do amor e como a propria relacao sexual se integra dentro do amor e dentro da vida” pode ser encontrado, por exemplo, aqui]


****[Note-se como, curiosamente, em Ingles, uma crianca nascida fora do casamento e' designada "Love Child", i.e. "Filho/a do Amor"]





Quando camaradas solteiras ficam gravidas, consideramos isso um escandalo. O
verdadeiro escandalo e’ o nao termos sabido educar essas camaradas, nao lhes ter
feito assumir o verdadeiro sentido do amor e como a propria relacao sexual se
integra dentro do amor e dentro da vida.

Samora Machel




Decidi dedicar um post separado a essa (infeliz) tirada de Samora Machel, incluida no catalogo desta exposicao de Naguib, por um lado, porque ela destaca-se por si propria das outras, geralmente bem mais pacificas e ponderadas, citacoes nela pintadas e, por outro lado, porque se relaciona e enquadra em algumas das discussoes que, sobretudo nos ultimos tempos (e.g. aqui), a este blog me tenho visto forcada a trazer.

Porque infeliz? Porque, de facto, nao me lembro de alguma vez ter lido algo que retrate de forma tao flagrante algumas das contradicoes e perversoes de um certo discurso dito “socialista revolucionario de esquerda”… Dir-se-ia que Samora estava a falar de uma sociedade algures numa ilha paradisiaca, totalmente “abencoada por Deus”, onde o “casamento” e’ uma instituicao culturalmente endogena e dominante, onde nao se contempla a possibilidade de gravidezes involuntarias e onde os "camaradas homens" (solteiros ou casados) sao todos uns “principes perfeitos” ou “santos”!...

Mas a realidade, e ela nao e’ exclusiva da sociedade mocambicana, e’ que a instituicao “casamento” (e da citacao pode inferir-se que Samora se estaria a referir ao casamento oficial, monogamico e, possivelmente, ate’ mesmo religioso) e’ culturalmente exogena a maior parte das, senao a todas as, sociedades africanas: ele foi “trazido” pela colonizacao e manteve-se quase totalmente confinado aos segmentos populacionais (minoritarios) assimilados as culturas e religioes europeias.

Juntamente com o casamento (oficial e/ou religioso) monogamico, os europeus levaram tambem o patriarcado, com o homem como 'chefe de familia', como estrutura familiar dominante, e embora este nao fosse exogeno as sociedades africanas, nunca foi dominante em todas elas. De facto, o matriarcado e as linhagens matrilineares eram e, em grande medida, continuam a ser, dominantes em varias sociedades africanas, onde as mulheres, em particular no que toca a sua sexualidade e direitos reprodutivos, teem um estatuto completamente distinto daquele que lhes e' reservado nas sociedades patriarcais e patrilineares.[*]

Como, entao, compreender-se que um tal discurso tenha sido proferido por um lider revolucionario africano, num pais em "transformacao revolucionaria" para a "criacao do homem novo", em "combate contra a alienacao, aculturacao e obscurantismo promovidos pela religiao", em “recuperacao das suas raizes culturais” e em "resgate dos seus principios e valores morais" (e aqui ressalvo o facto de a citacao nao estar datada, tal como nao o estao as outras citacoes constantes do catalogo, pelo que nao sei se a tera’ proferido ja’ no pos-independencia, ou se ainda durante a guerrilha anti-colonial)? Pessoalmente, so’ o posso entender como uma perversao da ideologia socialista (comunista?) revolucionaria dita de esquerda… [**]


Josina Machel por Malangatana


De facto, em minha opiniao, apenas uma tal perversao pode explicar que a mesma ideologia que via o casamento como uma instituicao "burguesa", que professa(va?) a “emancipacao da mulher”, que a aceitava como “companheira de luta”, incluindo de armas na mao, qualquer que fosse a sua idade (!) - veja-se aqui a biografia da primeira esposa de Samora, Josina Machel, retratada acima por Malangatana e na foto abaixo, a direita - que a incentiva(va?) a tomar as redeas do seu proprio corpo e do seu proprio destino, a tomar as suas proprias decisoes de vida e a assumir a responsabilidade e as consequencias dos seus proprios actos, nao contemple a possibilidade de que essa mesma mulher possa ser “mae solteira” por decisao propria; ou que se tenha encontrado nessa condicao em resultado de uma desilusao amorosa posterior ao seu engravidamento; ou que possa ter engravidado em resultado de uma violacao… Em qualquer dos casos, a assumpcao plena de uma gravidez e’ (deve ser) sempre uma responsabilidade partilhada – e esta nao e’ estritamente uma questao do foro ideologico (e nem sequer do “politicamente correcto”) ou religioso: e’ uma questao dos foros humanistico e etico-moral!


Josina Machel (a direita)


No entanto, em nenhum momento Samora se refere ao "camarada homem" (casado ou solteiro) que engravidou a “camarada solteira”… E o que afirma e’ duplamente perverso: por um lado, assume o preconceito, a culpabilizacao exclusiva e a estigmatizacao social da “mae solteira” como um dado adquirido (“consideramos isso um escandalo”); por outro lado, sugere que o “assumir o verdadeiro sentido do amor e como a propria relacao sexual se integra dentro do amor e dentro da vida”[***] e’ um dado adquirido no que ao "camarada homem" diz respeito e que apenas a "camarada mulher" (... qual Eva-serpente-jezebel(a) “corruptora” de Adao no paraiso ...) precisa de “ser educada” naquele sentido… para “nao provocar escandalo”!

Mas, talvez mais perturbador do que tudo isso e' a implicacao de que aquela "camarada solteira" nao possa ter entre os seus valores, desde muito cedo na vida, o principio de que a sua auto-estima, dignificacao e valorizacao como MULHER e como SER HUMANO nao estao, nunca estiveram, nem podem estar, em nenhuma circunstancia, exclusivamente dependentes de uma alianca no seu anelar; que a sua postura perante a VIDA nao e', nao pode ser, definida e interpretada exclusivamente pela sua sexualidade - certamente nao por 'definicoes' e 'interpretacoes' dessa sexualidade confabuladas e maliciosa e torpemente forjadas pela vil devassa de terceiros e, sobretudo, terceiras, frustrado/as e recalcados em relacao a sua propria sexualidade e a sua propria vida; ou que uma gravidez fora do casamento, ou que nao resulte em casamento, nao possa ter sido resultado de um acto de Amor... [****] entre "ambos os camaradas", homem e mulher, envolvidos!

Enfim… simplesmente (dupla... triplamente) triste e lamentavel!

(Contudo, Paz a Sua Alma)



*[A legalizacao em 2005, em Mocambique, da (existente) poligamia, bem como a eliminacao do estatuto de facto do homem como 'chefe de familia', como aqui se pode constatar, e' disso apenas a (tardia?) confirmacao oficial...]


**[Infelizmente, Samora nao estava sozinho nesse tipo de postura: era, pelo menos em parte, a ela que me referia aqui, quando falava em determinados grupos de "um radicalismo (embora raramente assumido abertamente) dito “de esquerda” em termos politico-ideologicos e de ideais economicos, associado a um conservadorismo marcadamente “de direita” em termos socio-culturais"; e' tambem ela que se esconde, com o rabo de fora, por detras de certos discursos ditos "feministas de esquerda" disseminados por certas hipocritas 'donas' puritanas recalcadas, frustradas, deprimidas, depressivas e deprimentes, rejeitadas e cheias de ressaibos, inveja e ciumes, que nao nasceram mulheres, aparentemente afectas aos mesmos grupos acabados de referir, como a(s) de que aqui se fala...]


***[Para mim o significado de “assumir o verdadeiro sentido do amor e como a propria relacao sexual se integra dentro do amor e dentro da vida” pode ser encontrado, por exemplo, aqui]


****[Note-se como, curiosamente, em Ingles, uma crianca nascida fora do casamento e' designada "Love Child", i.e. "Filho/a do Amor"]

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